O ciclo da administração pública
O ciclo da administração pública, que se inaugura sob os comandos da presidente Dilma Rousseff e dos 27 governadores, emite sinais animadores. Os planos anunciados pela nova direção do país abrigam uma coleção de substantivos e verbos que, em tempos idos, podiam ser considerados cartas do baralho da demagogia. Hoje, não são apenas críveis como absolutamente necessários para a vida saudável dos entes federativos e a sobrevivência dos próprios governantes. O escopo é denso: melhorar a qualidade dos serviços; reequilibrar as finanças; cortar despesas de custeio; revisar contratos; extinguir cargos comissionados; aumentar a eficiência do gasto público; promover um salto de desenvolvimento, socialmente equilibrado e ambientalmente equilibrado e por aí vai. É natural que um repertório tão pleno de promessas sérias e boas intenções faça parte da rotina de quem começa a navegar o barco. Mas a saúde financeira dos Estados, de tão debilitada, impõe razoável dose de credibilidade ao discurso dos comandantes que assumem o leme até o final de 2014.
De início, o lembrete de Maquiavel: "Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas". Quem patrocina um programa reformista, explica o pensador, tem inimigos entre aqueles que lucram com a velha ordem e poucos defensores que teriam vantagens na nova ordem. A resistência se torna mais forte em territórios contaminados pelas mazelas da velha política, entre as quais podemos apontar loteamento da burocracia estatal, descontrole de gastos, ausência de planejamento, improvisação, acomodação e incúria, fatores que descambam na perpetuação do status quo. Para alcançar êxito, o princípio maquiavélico é este: os governantes devem realizar uma blitzkrieg agora, quando iniciam o ciclo administrativo. Entre o meio e o final de governo, será mais complexa a missão de reformar processos. Alguns conhecem a receita por já terem-na aplicada em seus Estados.
Diminuir despesas de custeio é a primeira disposição. A folha de salários tem sido uma área crítica. Nos últimos 10 anos, os gastos com custeio nos Estados saíram do índice de 1,1% para mais de 6% do PIB. A meta de reduzi-lo começa pela exoneração de cargos comissionados, decisão quase consensual entre os governadores. Ocorre que a maior parcela desse contingente está sob a chancela política. Por isso, a prática de corte massivo de comissionados no início da gestão, apesar de gerar impacto, fica amortecida ao longo do tempo. A massa que sai acaba sendo reposta, chegando, ao final do mandato, praticamente do tamanho inicial. Os vazios da largada são preenchidos na chegada. A eliminação desse exército é tarefa impraticável, eis que nele estão fincados os bastiões políticos das forças governistas. Siqueira Campos, do Tocantins, promete, por exemplo, cortar 70% dos gastos com custeio; Ricardo Coutinho, da Paraíba, suspendeu o reajuste de 27,92% no salário dos servidores concedido pelo antecessor; Agnelo Queiroz, do DF, exonerou 15 mil comissionados. Sustentarão eles tais posições até o final?
O loteamento dos cargos, velha prática que alimenta partidos e lideranças, se presta à meta de perpetuar grupos e mandos. A fisionomia administrativa formada por quadros disformes, incapacitados e desmotivados só muda com a profissionalização da máquina e a adoção da meritocracia. São poucos os entes federativos, porém, que se propõem a estabelecer sólidos programas de capacitação de funcionários e racionalização de serviços. O estabelecimento de metas, a administração voltada para resultados e os contratos de gestão são iniciativas ainda em processo de experimentação. Se a politização da gestão é algo com que se deve conviver, por conta da tradição patrimonialista de nossa política, a profissionalização da burocracia- a partir da redefinição e fortalecimento das carreiras de Estado - é a única semente capaz de gerar bons frutos. Exemplo animador vem de São Paulo, onde o governador Geraldo Alckmin acaba de convocar o consultor de gestão Vicente Falconi - o mesmo que orientou o "choque de gestão" no governo Aécio Neves em Minas Gerais - para montar a equação-chave: "como fazer mais e melhor com menos dinheiro".
É evidente que Estados mais poderosos como São Paulo, onde é possível cortar, sem grandes traumas, R$ 1,5 bilhão do Orçamento, dispõem de condições melhores para incorporar à gestão modelos bem sucedidos na iniciativa privada. O que não impede às unidades federativas menos desenvolvidas de buscar qualificar a gestão. O dilema que se apresenta às unidades mais frágeis é o de ajustar, de forma harmônica, os três cinturões da administração: o político, o econômico e o social. O primeiro escuda a trajetória político-eleitoral do governante; o segundo garante o equilíbrio financeiro do Estado, vital para o crescimento; e o terceiro se conecta ao sentimento popular. Reforçar um cinturão quase sempre implica enfraquecer outro. Ainda não se encontrou a fórmula que combine sacrifícios econômicos e recessão com crescimento, aumento de emprego, redistribuição de riquezas e justiça social.
Inexiste, porém, política sem riscos. Mas os atores temem enfrentá-los em função da acirrada competitividade política. Receiam que medidas de contenção de gastos, compressão das massas funcionais e enxugamento de estruturas lhes tirem a capacidade de reverter um processo de desacumulação de forças, fenômeno previsível quando se tomam medidas impopulares. Atente-se, porém, para o estouro da boiada que se viu no último pleito. Romperam-se os limites do bom senso, planilhas de contas a pagar despeitaram a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mesmo assim, certos candidatos à reeleição não alcançaram sucesso. O fato revela uma nova disposição social. Medidas demagógicas, com foco exclusivo na salvaguarda do mandatário, nem sempre imprimem força. Sob esse clima saudável, a gestão pública poderá dar um salto de qualidade em 2011.
Texto de Gaudêncio Torquato.
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